DICOTOMIA ENTRE A AUTONOMIA PRIVADA E A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Rakel Faria Ferreira, Anderson Dias Cardoso

Resumo


Resumo

No fluir da história, a raça humana foi expandindo-se demograficamente, avançando tecnologicamente, solvendo questões sensíveis como as relacionadas à saúde, produção, moradia, bem estar, ao tempo que passou-se a valorizar o acúmulo de bens de toda espécie, acabando por ser, tal prática, um mecanismo de diferenciação, e ainda, dominação social. Já em pleno século XX, o mundo se transformava radicalmente. Proliferação de corporações, oferecimento de serviços públicos em larga escala, o deslumbramento com a cultura de consumo, o advento da Segunda Grande Guerra validando o princípio da dignidade humana, dentre outros fatores, foram decisivos para que se adotasse a ideia de que seria necessária a intervenção Estatal, a fim de equilibrar e dinamizar as relações entre o indivíduo e grandes empresas. Época e condições para o germen da Função Social do Contrato. Diante dos aspectos de contraposição e complementaridade entre os princípios da AUTONOMIA PRIVADA e a FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO, tanto antagônicos quanto complementares, inflama a discussão sobre a primordialidade da intervenção do Estado em face do poder de manifestação das partes nas relações empresariais. O presente resumo tem por escopo abordar tais questões, com perfunctório histórico conceitual sobre o desenvolvimento, interconexão entre os princípios relacionados, e amostrar os impactos sócio/político/econômicos sobre o indivíduo e demais entidades. Por meio do caminho palmilhado por outros pesquisadores, através de pesquisa bibliográfica, valendo-se, para tanto, de artigos, legislação pátria, doutrina, e literatura pertinente.

 

Palavras chave: Contratos; Função social; Direito empresarial.

 

Abstract

In the flow of history, the human race has expanded demographically, advancing technologically, solving sensitive issues such as those related to health, production, housing, well-being, while valuing the accumulation of goods of all kinds, ending because it is such a practice, a mechanism of differentiation, and still, social domination. Already in the twentieth century, the world was changing radically. Proliferation of corporations, the provision of large-scale public services, dazzling consumer culture, the advent of the Second World War, and validation of the principle of human dignity, among other factors, were decisive for adopting the idea that State intervention in order to balance and streamline the relations between the individual and large companies. Time and conditions for the germ of the Social Function of the Contract. Faced with the aspects of contraposition and complementarity between the principles of PRIVATE AUTONOMY and the SOCIAL FUNCTION OF THE CONTRACT, both antagonistic and complementary, it ignites the discussion about the primordiality of the intervention of the State in the face of the power of manifestation of the parties in the business relations. The purpose of this summary is to address such issues, with a conceptual history of development, interconnection between related principles, and sample socio-political / economic impacts on the individual and other entities. Through the path traveled by other researchers, through bibliographical research, using, for such, articles, country legislation, doctrine, and relevant literature.

 

Key words: Contracts; Social role; Business law.

 

Introdução

As relações e estruturas sobre as quais a civilização se desenvolveu foram se tornando mais e mais complexas, e já na Roma Antiga, tomamos ciência do conceito de Autonomia Privada, o qual vinha atrelado ao brocardo latino “pacta sunt servanda”, que oferecia a liberdade de contratar, vinculando ambas as partes.

Autonomia privada, é daqueles termos que agregam múltiplas conceituações.
Para Maria Helena Diniz (2011, p. 40-1), por exemplo, esta consistiria na capacidade/poder das partes, em plena concordância, de realizar seus interesses, sob o amparo e segurança legal.

Natália Berti (2014, p. 83), a relacionaria a elementos de ordem interna, envolvendo autonomia, poder de regulamentação e execução de contratos entre as partes, sem qualquer sujeição externa.

Francisco Amaral (2008, p. 338), por sua vez, infere que este é um poder relativo à propriedade e os direitos decorrentes desta, sob a lógica e o direito que regula o mercado ao qual as partes se submetem.

Em suma, é autonomia, poder consciente para se transacionar os bens da vida, regulado pelas partes, desde que não eivado de ilegalidade.

Função social do contrato, na verdade, é um princípio positivado (art.421, do Código Civil), o qual nos diz que, “A liberdade de contratar, será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Sobre o princípio da função social do contrato, Maria Helena Diniz (DINIZ, 2004, p. 37) menciona a utilização do princípio/norma como ferramenta apta a promover o equilíbrio das relações sócio/econômicas, através da intervenção Estatal, visando o bem comum, e facilitando a dinâmica dos negócios, seja quanto a reajustes, assim como resolução destes.

Para Pablo Stolze (GAGLIANO, 2005, p. 55) é princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que possui efeitos limitadores à liberdade de contratar, barreira criada para proteger o bem comum.

Assim, ambos princípios, tanto antagônicos quanto complementares, foram sendo incorporados pelo ordenamento jurídico de várias nações, tendo o segundo deles sido realmente efetivado em terras brasileiras, com o advento da Constituição Federal de 1988, amparado principalmente pelo Código de Defesa do Consumidor.

Isto exposto, o presente trabalho se desenvolverá por meio do caminho palmilhado por outros pesquisadores, através de pesquisa bibliográfica, valendo-se, para tanto, de artigos, legislação pátria, doutrina, e literatura pertinente.

 

Metodologia

A metodologia empregada neste estudo, será a de pesquisa bibliográfica, qualitativa, na qual há de se investigar artigos, doutrina e legislação vigente, buscando lançar uma centelha de luz sobre o assunto.

 

Resultados e Discussão:

O Direito Romano foi forjado por relações patriarcais, onde os pater Familias detinha o poderio sobre todo o núcleo familiar, inclusive nos aspectos que dizem respeito à vida e morte de seus integrantes, numa espécie de micro reprodução da figura real em cada domus (uma espécie de lar ampliado).

Tais relações de poder e autonomia, foram extrapoladas para as de caráter negocial, se aproveitando ainda da natureza rigorosa dos contratos, no que toca a execução, a qual somente sofria intervenções do Estado quando de seu descumprimento.

Podemos notar a gravidade com que o tema era tratado, através da leitura do brocardo “Cum nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto”[1].
Na Idade Média, fortemente influenciada pelo ponto de vista moral e religioso, tendo a Igreja Católica como principal agente de estruturação do Velho Mundo, pós queda do Império Romano, preceituava que todas as relações deveriam se dar à luz das Escrituras, abominando o lucro excessivo, a usura, e louvando atitudes de honestidade, humildade, frugalidade e compartilhamento dos bens terrenos, com promessa de um mundo melhor, no porvir. O filósofo italiano Fragoso, autor do Diálogo da Fortuna, certa feita escreveu: “a mão esquerda segura um freio e rédeas para reprimir excessos, e sua direita, uma copa para recompensar os justos.”

Já na Idade Moderna, com a substituição do Feudalismo por Estados Nacionais, a ascensão da burguesia, sob os efeitos da Revolução Francesa e a Independência das 13 Colônias, foram matéria prima para ebulição dos pensamentos Liberais. Estes eventos, fomentados pelas cartas desenvolvidas nesse contexto, com escritos que estimulavam a valorização do indivíduo e seus direitos, enquanto repudiava a intervenção do Estado e pleiteava sua abstenção nas relações interpessoais, forneciam os moldes de como os negócios jurídicos deveriam ser exercidos, dali em diante.

Kant[2], por exemplo (1980, p. 137), entendia que a vontade humana deveria ser concebida como vontade legisladora universal. Darcy Bessone (1987, p. 31) acreditava na justeza de todo e qualquer contrato, pois este contemplava a vontade e interesse das partes, realizados de forma livre. Outro pensamento em voga, era o de que as relações contratuais deveriam ser regidas por mecanismos orgânicos de controle, favorecendo a livre iniciativa, a lei da oferta e demanda, segundo a cartilha de Adam Smith.

Ocorre que, com os eventos da Revolução Industrial, que barateou e massificou a produção de bens de consumo, tornando-os acessíveis às classes menos favorecidas, fez com que boa parte da população migrasse para as cidades, permitiu a criação de mais formas de contratos, houve a necessidade de agilizar e desburocratizar as negociações entre as partes, que, posteriormente, deram origem contratos de adesão.

Outro fato que veio a influir na forma como contratamos hoje em dia é que, diante do soerguimento de uma indústria forte, houve a formação de cartéis, monopólios, a intervenção da economia de mercado como um catalisador da promoção de desigualdades sociais, o emprego de artifícios para a destruição das pequenas empresas, a concentração de capital, o capital especulativo; então o consumidor se viu ali,  cerceado em seus direitos e poder de escolha, prejudicado por contratos de adesão que lhes fosse desvantajosos, vítima de preços abusivos, dentre outras situações nocivas.

Quando da Primeira Grande Guerra, Andreza Cristina Baggio Torres (2006, pg.54) ressaltou que os diplomas legais já não acompanhavam as evoluções do mercado e o crescimento populacional.

As Constituições Mexicana (1971) e a de Weimar (1919) passaram a intervir nas relações comerciais, tentando equilibrar as relações entre consumidores e as grandes empresas.

Com advento da Segunda Grande Guerra, derrotado o Estado Alemão, detectadas atrocidades promovidas e permitidas pelo Positivismo Jurídico, as legislações vem a sofrer mudanças, passando o enfoque das políticas daquele tempo a promover o ser humano a objeto de cuidado e preservação, em face dos poderes, não só políticos, quanto econômicos.

Beatriz França (2006, p.93) relata:

Com o advento do Estado Social a liberdade de contratação passa ter fronteiras que teve como consequência intervenção na economia global, dando origem ao dirigismo contratual. Também foi preciso impor limites à autonomia privada, ao controle dos bens e, seguramente, à propriedade, ao mesmo tempo em que programas assistenciais eram desenvolvidos. Resta claro que o individualismo cultuado durante décadas naufragara.

Jorge Cesar Ferreira da Silva (2004, p. 127), foca no papel do terceiro, nestas relações jurídicas. Acredita que seria um aparato criado para evitar situações de instabilidade, frente a interesses conflitantes, como no caso que cita a concessão de isenções a certa empresa, as quais foram consideradas danosas ao erário, pela população.

Em relação à Função Social do Contrato, utilizemos um exemplo absurdo, ocorrido no ano de 2000, na Bolívia (Cochabamba), em que o próprio Estado, sob reivindicações do FMI, agiria como algoz de seu povo. Uma filial de uma empresa Norte Americana (Bechetel), que era concessionária da exploração dos recursos hídricos do local, após dobrar o valor de suas tarifas, tentava privatizar todo o sistema, chegando ao cúmulo de proibir a coleta da água das chuvas, multando quem assim o fizesse.

Em 8 de abril, houve decretação de estado de emergência, a prisão dos líderes dos grupos que se insurgiram contra a operação da empresa. Tudo isso por parte do presidente Hugo Banzer.

O princípio da dignidade da pessoa humana, a qual remete aos ideais Iluministas, sendo reverberados por ocasião da II Grande Guerra (Declaração da ONU), e consagrada no ordenamento jurídico brasileiro através da Constituição de 1988, veio a elevar as relações contratuais a uma condição de realização do ser humano, não mero instrumento de satisfação egoística, ou interesses escusos, como ocorreu no caso boliviano.

No desenvolvimento do assunto, percebemos o dinamismo que envolve tais relações. Segundo o Princípio da Livre Iniciativa (art. 1°, Parágrafo Único da CF de 1988), o exercício de qualquer atividade lícita, não carece de autorização do Estado. Ocorre que a empresa de fornecimento de serviço de Telefonia por IP, à despeito de todas as irregularidades, e processos escusos em meio à suas operações, não teve suas atividades, até à época, sido declaradas ilícitas, então a negociata entre as partes foram tidas como regulares, não sofrendo qualquer intervenção estatal, (a Telexfree chegou a patrocinar o time carioca de futebol, Botafogo), um exemplo máximo da autonomia negocial.

Quanto à boa fé objetiva, esta não se representa no exemplo envolvendo a empresa de Telefonia por IP, vez que, enquanto, de uma parte, se utilizava de artifícios de atração baseados na venda da ideia de um produto, quando, na realidade, seu foco era o ingresso num negócio de multiplicação de divulgadores, que pagavam alto por seu ingresso no negócio, a outra parte, quando ciente de que o esquema possuía características fraudatórias, com um certo resultado da ruína dos adquirentes posteriores, e da própria economia, estes estavam mais preocupados com seus próprios interesses, não com uma moralidade objetiva que deveria reger a sociedade.

 

Conclusão

Se, por um lado, a liberdade de contratação pode trazer benefícios consideráveis à sociedade, o fato de haver desigualdades orgânicas/cognitivas, privilégios sócio/político/econômicos, capacidade de mobilização, etc., podem ser fator de desestruturação e causa de prejuízo a indivíduos, grupos ou entidades (como ocorreu no caso das pessoas que ignoravam a natureza da empresa fraudulenta). O Estado seria então, um modulador das relações, agindo com intuito de equalizar, na medida do possível, o tecido social, evitando atrofia ou hipertrofia de alguma parte deste organismo.

Trazendo para hoje, os aludidos casos supracitados de forma ilustrativa, podemos perceber, na prática, princípios importantes para a manutenção da sociedade, no que tange às relações envolvendo permuta de bens e valores, ainda que imateriais.

Todavia, o princípio da isonomia, que representa um equilíbrio mínimo e a salubridade do contrato, é o que carece a sociedade, por meio da regulação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 

 

COULANGES, Fustel de. A formação da cidade. In: A cidade antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

 

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: Acesso em: 06 abril. 2018.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

DRUMOND, Nathalie. A Guerra da água na Bolívia: A luta do movimento popular contra a privatização de um recurso natural. Disponível em: Acesso em: 07 de abril de 2018.

 

EXAME. Telexfree anuncia patrocínio ao Botafogo. Disponível em . Acesso em: 06 abril. 2018.

 

FRANÇA, Beatriz. A (des)construção do direito privado em face da despatrimonialização do sujeito de direito civil constitucional – aspectos constitucionais da autonomia privada. In: NALIN, Paulo Roberto Ribeiro (Org.). Contrato & Sociedade: a autonomia privada na legalidade constitucional. Curitiba: Juruá, 2006. v.2.

 

G1 Globo.com. Fundador da Telexfree admite 'fraude' e esquema de pirâmide financeira. Disponível em < goo.gl/bLpyXg>. Acesso em: 06 abril. 2018.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos: teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2005.

 

KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Valerio Rohden e Udo B. Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).

 

TORRES, Andreza Cristina Baggio. Teoria Contratual Pós-Moderna: As redes contratuais na sociedade de consumo. Curitiba: Juruá, 2007.


[1]   A Lei das XII Tábuas. Disponível em . Acesso em: 06 abril. 2018.

 


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