O PRINCIPIO DA LIVRE INICIATIVA VS. REGULAMENTAÇÃO DO CROWDFUNDING: QUAL É O REAL PAPEL DO ESTADO NAS INOVAÇÕES DO MERCADO?

Edson Antonio de Oliveira Bastos, Melina Oliveira Silva

Resumo


Resumo
Duas propostas legislativas já foram apresentadas ao Congresso Nacional visando regulamentar a realizações de crowdfunding – financiamento coletivo, a primeira buscava a trazer um conceito legal da matéria, bem como incentivos para sua realização, enquanto a outra normatiza a sua utilização nas campanhas políticas. Destarte, as propostas são bastante resumidas, não inovando em muito, realizando um papel descritivo que, na visão de alguns civilistas, é destinado a doutrina, não ao legislativo. Paralelo a isto, estudos económicos tem demonstrado quão eficaz pode ser tal tipo de financiamento, na garantia do desenvolvimento de pequenas empresas e resguardo da livre concorrência e o livre mercado. Em vista disto, discute-se o dever do Estado de zelar pela economia versus o risco de atrofiamento do sistema pela hiper-regulamentação ou busca pela planificação da economia.
Palavras chave: Financiamento Coletivo; Economia Colaborativa; Direito Empresarial;

Abstract
There are two legislative proposals in the national congress, which aim to regulate the achievements of crowdfunding - collective financing, a search to bring a legal concept of the subject, as well as incentives for its accomplishment, while a normative its use in political campaigns. Thus, the proposals are rather brief, not innovating much, performing a descriptive role that, in the eyes of some civilians, is intended for doctrine, not legislative. Parallel to this, economic studies have demonstrated how effective such a type of financing can be, guaranteeing the development of small businesses and safeguarding free competition and the free market. In view of this, the State's duty to watch over the economy versus the risk of system atrophy by hyper-regulation, or pursuit of economic planning, is discussed.
Keywords: crowdfunding; collaborative economy; business law;

Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conhecida como carta cidadão é, sem sombra de dúvida, recheada com direitos de segunda, terceira e quarta dimensão do direito, tendo suas previsões sociais e econômicas lhe garantido o título de “carta cidadã”. Inegável, contudo, é sua fundamentação nos princípios liberais, consagrando a liberdade individual do indivíduo de contratar, o livre mercado e livre iniciativa, dentre outros.
Todavia, se observa uma tendência do direito pátrio a extrema regulamentação, cumulada com o atraso existente entre os melhores debates na ciência jurídica e a produção legislativa, que edita leis que ao momento de sua promulgação já estão a muito atrasadas ou ultrapassadas, v.g., o código civil de 2002, que entrando em vigor em 2003, trazia ideias que já eram consideradas superadas no início dos anos de 1990.
Aliado a isto, a tendência a hiper-regulamentação, por muitas vezes transmutam relações civil e empresariais em relações de consumo, ou relações de trabalho, ou se limitam a declamar a realidade fática, engessando as relações e limitando os atos negociais e empresariais.
Diante disto, sendo possível determinar o papel do Direito diante das inovações que surgem nas relações contratuais e novos modelos negociais, perguntamos: qual é o papel do Estado diante destas relações? Há um papel para o Estado diante das novas modalidades de contratação ou de levantamento de capital? Isto se questiona diante das propostas de regulamentação do Crowdfunding, que já se mostrou em outros Estados democráticos como modelo eficiente de capitação de recursos e financiamento de empreendimentos.
No presente trabalhou, foi dedicado esforços ao analisar as propostas de regulamentação do Crowdfunding (financiamento coletivo), nos projetos de lei nº 6590/2013 e 6022/2016, buscando entender qual a inovação que os dois PLs trazem ao direito, buscar compreender em que estes se diferenciam dos limites que legislação vigente já apresentam, e qual a contribuição para tais relações, em comparação com o modelo de regulamentação português.

Metodologia
A presente pesquisa utiliza do método dedutivo, onde através do estudo do papel do Estado lato senso, busca comparar com este papel no caso em análise, se valendo da revisão bibliográfica, enquanto o método hermenêutico de interpretação dos projetos de lei será o teleológico, tendo como referencial teórico os trabalhos de João Vieira dos Santos.

Resultados e Discussão:
De início, busca-se compreender o papel que a constituição reservou ao Estado brasileiro na economia de mercado. Na redação da Lei Maior, repousam as influências do período que viveu aquele constituinte originário, que ao delinearem os fundamentos da república, positiva-se a livre iniciativa (art. 1º, IV), e quando nos objetivos da nação brasileira, elenca-se o propósito de garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, II).
As três décadas que antecedem a promulgação desta constituição, o debate econômico é ocupado exclusivamente na disputa dicotômica entre o livre mercado e a planificação econômica. Fato notório e inegável, que o livre mercado obteve êxito no plano nacional, uma vez que foi o adotado e consagrado na constituição.
Doutro norte, a constituição prescreve os fundamentos para o direito econômico e social, buscando uma regulamentação no mercado, visando possibilitar os demais fundamentos. Quanto a isto, Alexandre de Moraes afirma que a “constituição de 1988, em seu artigo 170, optou pelo modelo capitalista de produção” e completa dizendo que a Lei Suprema “consagrou uma economia descentralizada, de mercado, sujeita a forte atuação do Estado de caráter normativo e regulador” .
Isto, para a doutrina contemporânea, não é mais uma contradição, nem são ideias incompatível com os pilares do liberalismo, sendo, na verdade, uma das conciliações que a democracia liberal trouxe a humanidade, como afirma HAYEK, em sua substanciosa obra “O Caminho da Servidão”, publicada pela primeira vez em 1944, de caráter liberal declarado, que salienta que a liberalismo não é incompatível com as demandas sociais do Estado, e que a intervenção deste na economia não desqualifica o caráter liberal de um estado, mas ao contrário, depende deste para seu bom funcionamento.

O funcionamento da concorrência não apenas requer a organização adequada de certas instituições como a moeda, os mercados e os canais de informação (...) mas depende sobretudo da existência de um sistema legal apropriado, estruturado de modo a manter a concorrência e a permitir que ela produza os resultados mais benéficos possíveis. Não basta que a lei reconheça o princípio da propriedade privada e da liberdade de contrato; também é importante uma definição precisa do direito de propriedade aplicado a questões diferentes. (HAYEL, F.A. 2010, p. 59)

Os grandes doutrinadores do direito pátrio, por sua vez, reconhecem que as intervenções do estado na economia, bem como nos negócios privados, são necessárias para garantir o equilíbrio do sistema socioeconômico do país, na mesma ótica de Jean Jacques Rousseau, o contrato social não vem tirar a liberdade, mas sim garanti-la . Como coloca José Afonso da Silva, que demostra que “em certo sentido pode-se admitir que os direitos econômicos constituirão pressupostos da existência dos direitos sociais.” (SILVA, 2011).
O Estado, enquanto for Estado Democrático de Direito, tem papel a desempenhar no mercado, segundo a doutrina, para atender aos direitos sociais, e para garantir os próprios direitos econômicos.
Nisto, questiona-se, há necessidade de regulamentação do crowdfunding – financiamento coletivo? E caso haja, as propostas ora analisadas, atendem aos demais fundamentos e objetivos do Estado?
O termo crowdfunding, que em tradução direta significa financiamento pela multidão, pode ser definido como “um meio através da internet de negócio ou levantamento de valores na forma de doação ou investimento de uma multiplicidade de indivíduos” . É um método pelo qual, um sujeito divulga uma ideia para, na coletividade, encontrar o financiamento necessário para sua execução, de modo independente, sem que seja necessário recorre-se a uma instituição financeira.
Para Bastos, Lino e Torquete a relação que se estabelece entre aqueles que financiam tais empreendimentos e aquele que apresenta a ideia é puramente civil, já existindo farto regramento no direito contratual e nas regras gerais do direito civil, para que tais relações se mantenham e sejam realizadas.
O Banco mundial publicou em 2013, relatório onde demonstrou o potencial de desenvolvimento econômico que o financiamento colaborativo pode ter em países em desenvolvimento, e desenvolvidos, uma vez que auxiliam pequenas e médias empresas a lançarem novos projetos e/ou produtos, ou empreendedores a arrecadares o capital necessário para iniciarem um novo projeto ou empresa.
O direito português, reconhecendo o potencial deste meio negocial, adiantou-se e já regulamentou tal modalidade de investimento, quando na edição da Lei nº 122/2015, que apresentou aquele país uma definição de crowdfunding, subdividido em quatro modalidades, e restringiu o que entendeu necessário.
João Vieira dos Santos (2015), pouco antes da publicação desta Lei, apresentou artigo desenvolvido com a soma dos estudos no tema, sustentando o potencial deste método como forma de capitalização das sociedades.
Ao delinear as vantagens desse sistema, frente a outras modalidades de levantamento de capital, o autor comenta que o financiamento coletivo “promove-se criatividade, inovação, transparência e eficiência de uma forma que outros meios de financiamento de sociedades comerciais, como fundos e sociedade de Capital de Risco ou Business Angels, não conseguem.” , contudo reconhece que este sistema não exclui os demais, apenas os complementa.
O trabalho argumenta ainda que o bom funcionamento das modalidades de financiamento colaborativos chamadas: de capital e por empréstimo são as formas que mais crescem no mundo, contudo, não estão presentes na realidade portuguesa pois o ordenamento daquele país (bem como o próprio ordenamento europeu) estão estáticos, sem uma regulamentação que permitam estas práticas de maneira segura.

Sente-se, por isso, a necessidade de regulamentação da figura para torna-lo numa estrutura de investimento, de forma a assegurar a proteção dos investidores, a credibilidade e a fiabilidade do sistema, e evitar a burocratização e os estraves ao investimento. Como problemas desta figura, temos o grande potencial de fraude, o aproveitamento dos projetos por investidores institucionais, o branqueamento dos capitas, a quase inexistência de um mercado secundário e o atual sistema de patente ser demasiado fragmentado... (SANTOS, 2015. p. 13)

Tendo reconhecido a necessidade de regulamentação, o autor sustenta que deve um regulamento novo, diferente do vigente, pois os sistemas de investimento vigentes naquele pais, assim como o Brasil, tem as grandes instituições bancarias como destinatários da norma, o que impossibilita sua aplicação nas relações de economia compartilhada.

A sujeição destas modalidades de Crowdfunding à regulamentação financeira e bancária complica a sua adoção. As restrições do ordenamento jurídico português e a sua complexidade tornam estas formas de investimento demasiado onerosas para as pequenas e médias empresas, que, para além de não conseguirem aceder ao crédito bancário, não têm uma estrutura adaptável para se financiarem no mercado regulamentado. (SANTOS, 2015, p. 05)

Nos projetos apresentados no Congresso Nacional, PL 6590/2013 e PL 6099/2015, os objetivos do legislador são bastante distintos. O primeiro projeto consiste em definir em norma um conceito de crowdfunding, e prever um inventivo aos investidores de projetos de caráter solidário, como dedução de imposto de renda, de percentual do valor doado/investido. O segundo regulamenta o uso deste sistema para o financiamento político.
O segundo, completamente irrelevante ao direito empresarial ou ao direito econômico, apenas reforças as ideias já consolidadas de meio de levantamento de recursos, não havendo o que comentar a este respeito.
O primeiro por sua vez, define, única e exclusivamente, as modalidades de crowdfunding por donativo ou por recompensa, não abordando os sistemas por capital ou de investimento, logo, seguro dizer que aquele projeto de Lei se limitava a descrever a realidade fática, uma vez que tais modalidade ocorrem no cotidiano da sociedade brasileira, se regendo pelos princípios gerais do direito contratual e direito civil.
Inexistindo qualquer menção as modalidades por empréstimo ou por capital, não há veto legal que impossibilite tal modalidade nas terras brasileiras, desde que observados os princípios gerais do direito, e em casos de ameaça a direito, a Lei de Introdução as normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4657/42) e o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) consagram o dever do juiz de julgar por analogia, costume e princípios gerais do direito (art. 4º, LINDB), bem como a obrigação da apreciação judicial de lesão ou ameaça de lesão a direitos (art. 3º, CPC).

Conclusão
Existe inegáveis deveres destinados ao Estado, quanto a realidade econômica e as inovações do mercado, seja em novos meios de contratar ou arrecadar credito. O meio pelo qual o estado deve influir nestas relações não são predeterminados, e no campo jurídico, a proteção aos envolvidos nestas e outras relações não pode se declarar omissão por não haver diploma legal específico. Quanto aos projetos legislativos propostos ao tema, considerando todos os argumentos que os acompanham, e a doutrina estudada até o momento, observa que são diplomas que limitam-se em declarar a realidade fática, apresentando pouca ou nenhuma inovação nesta relação, ou incentivo para que tais relações auxiliem pequenos empresários, ou empreendedores. Se antes da publicação destas normas, os investimentos já ocorrem de maneira exitosa, em nível nacional, não há qualquer evidência que tais atos legislativos serão positivos, ou negativos para quaisquer das modalidades deste negócio. A pesquisa não foi capaz de determinar um melhor meio de intervenção do Estado, afim de incentivar o crescimento deste método de capitação de investimento pelas limitações do método de pesquisa adotado.

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